Beit Midrash

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domingo, 5 de junho de 2011

Jesus, o Império e o Judaísmo - Parte II

 A Proposta de Richard HORSLEY no seu Jesus e o Império.

A idéia central da obra de Richard HORSLEY é mostrar Jesus como um profeta que dedicou sua vida a pregar uma revolução social na Palestina, assumindo características que o fizeram se aproximar das tradições proféticas de Moisés e Elias.
A tese principal defendida por HORSLEY, partindo do estudo do evangelho de Marcos e da Fonte Q, está em que Jesus promoveu uma revolução social na pátria judaica. Ele “liderou um programa de renovação do povo, e também pronunciou a sentença de Deus sobre os governantes da nação, sobre os romanos e sobre os seus representantes em Jerusalém, a face que a ordem imperial romana apresentava à população da Palestina” (p.85).
Assumindo a condição de Profeta, e tendo se dirigido aos camponeses no entorno do Lago da Galiléia, Jesus dedicou sua vida à causa de uma grande transformação capaz de levar o povo camponês da Galiléia a uma “renovação pessoal e comunitária” (p.85). Estava convicto de que sua missão teria efeitos decisivos a ponto de reverter a situação de opressão a que essa gente estava submetida. Por isso, “Jesus se dirigiu aos pobres camponeses de seu tempo, subjugados pelo cruel domínio do Império Romano e de seus associados locais da elite herodiana e judaica, conclamando-os para uma revolução que só teria sucesso se partisse da conscientização da situação de opressão em que viviam” (Airtonjo).
“Segundo Horsley, Jesus só pode ser compreendido dentro do contexto do imperialismo romano de sua época, e a sua pregação da chegada do "reino de Deus" significa a expectativa da libertação política e social aqui e agora, que na tradição camponesa, Deus providenciaria para aqueles que eram fiéis à aliança” (ver www.airtonjo.com). Até recentemente os manuais de teologia justificavam a originalidade do programa de Jesus enfatizando seu ministério público em contraste com as matrizes religiosas de suposto “judaísmo legalista” sob o patrocínio do farisaísmo. Visto sob o prisma da oposição radical à Lei/Tora, o fenômeno Jesus passou a ser lido como reformador da estrutura religiosa de um judaísmo decadente, legalista e vazio para a edificação da nova Religião do Amor. Desta premissa evoluíram construções teológicas distorcidas sobre um Jesus hostil à matriz judaica na qual viveu a toda sua vida.
Ao superestimar a excentricidade exclusivista do comportamento religioso-espiritual de Jesus, e a negativa da sua atuação política na sociedade, abriu-se caminho para um amplo desenraizamento da ação política no ministério público. Durante muito tempo, esse tipo de leitura despolitizadora desferiu sérios golpes sobre o Jesus histórico. Seu ministério era transportado para uma divisão entre dois mundos antagônicos: o judaísmo o cristianismo helenista.
            Ao oferecer pistas para a recuperação do Jesus histórico, HORSLEY encontra nos textos do Evangelho de Marcos e nos ditos da Fonte Q, elementos da dinâmica participativa de Jesus no amplo contexto social judaico: religião, política e economia. Tal inserção nos obriga a dar a devida atenção à força política de sua mensagem. O Jesus despolitizado tornou-se em nossos dias uma tendência ideológica poderosíssima que, infelizmente, predispõe o leitor a separar Religião da Política e da economia facilitando, assim, “reduzi-lo a uma mera figura religiosa” (p.12). Esse esforço de proteger Jesus contra a contaminação dos elementos “profanos”, desassociando-o da política e da economia, é uma tendência do “individualismo ocidental” visando facilitar sua apropriação.    
O passo seguinte á despolitização do ministério público de Jesus consiste na “domesticação” que insiste na livre apropriação de atitudes que refletem a imagem dócil de um pacifista. Ao lançar mão da apologia para reforçar um messias preocupado com o mundo espiritual, toda a agenda política fica claramente comprometida na sua mensagem. Particularmente notáveis a esse respeito são as declarações de Jesus: Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus e amai os vossos inimigos. Tais declarações poderiam sinalizar para um Jesus nada comprometido com a situação política da Judéia romana. O posicionamento frente aos tributos a Roma passava também o modo de se posicionar diante da Religião, já que a manifestação do domínio imperial romano através da cobrança de impostos servia de recado à população sobre quem era o dono da terra. Então, parece incabível aceitar que Jesus, assim como a maioria de seu povo, não estivesse rejeitando o Império tendo Deus como único Senhor!
Na luta pela renovação da aliança com Deus, Jesus se posicionou contra os dirigentes que governavam a Galiléia-Judéia, dirigindo, sobretudo, aos pobres camponeses de seu tempo que sofriam o jugo da dominação imperial romana. Como profeta de seu tempo, Jesus convocou esse povo para uma revolução social para a superação da opressão romana. Na mensagem captada nos discursos da Fonte Q, Jesus mostra um “Reino de Deus” presente entre os pobres. É para estes que o Reino é oferecido em forma de multiplicação de alimentos, remissão das dívidas, cooperação mútua, curas e milagres (Q 6,20-49). Ao propor a renovação para estes pobres, o Reino também mostra que os dirigentes e os poderes locais serão todos julgados e condenados por Deus (p. 85).  
A exemplo da Fonte Q, o programa de Jesus, no Evangelho de Marcos, expõe o movimento de seus primeiros seguidores em oposição ao Império, bem como ao regime de clientelismo exercido pelos governantes locais.
A principal alternativa no programa de Jesus baseia-se na pregação de uma renovação comunitária da família e clãs tradicionais inspirados nos moldes da antiga aliança de Israel com Iahweh. Ao se dirigir aos camponeses e às aldeias no entorno do lago da Galiléia, Jesus estava convencido da eficácia de um movimento de resistência e protesto tal como as tradições populares dos profetas bíblicos fizeram. Numa terra romanizada, socialmente assolada pelo desmantelamento das instituições, a alternativa era revigorar os antigos modelos de integração comunitária. Nas aldeias agrárias da Galiléia, a FAMÍLIA fornecia, pois, um ambiente singular usado para reeducar a consciência coletiva. É bem possível que nesse contexto é que emergem as “comunidades semi-autônomas cuja forma político-religiosa de administração era a assembléia da aldeia, Kenesset, dirigida por anciãos locais” (p.66). De um lado, os governantes mergulhados num mar de corrupção e privilégios, de outro, a imensa maioria da população, refém das altas taxas de impostos e tendo que produzir para sustentar as classes dirigentes. Eles estavam divididos por um enorme abismo social.      
A articulação entre as duas realidades, Roma e Estados Unidos, é apresentada na primeira parte do livro como uma crítica aos efeitos da distorção da despolitização de Jesus pela sociedade norte-americana. Ao falar da “NOVA DESORDEM MUNDIAL”, nas primeiras páginas (pp.7-20), HORSLEY se refere ao atual “Império Norte-Americano”. Ele arrisca traçar um paralelo entre o antigo Império Romano, em seu ápice, e o Império Americano de hoje. E conclui que ambos se tornaram opressores de povos subjugados, e em tom profético, ousa dizer que assim como a Antiga Roma, também a América cairá em desgraça.
 Sem constrangimento, HORSLEY aponta as contradições presentes na sociedade americana. Nas origens da colonização, os colonos americanos se orgulhavam de se inspirarem nas histórias da Bíblia para lançarem seus ideais de “Povo Eleito”, fugindo da opressão do novo Faraó, Jorge III, para buscar a liberdade na nova Terra Prometida da América. A figura de Jesus parecia inspirar novos movimentos de libertação e criar uma sociedade mais justa e livre dos opressores externos.
Trata-se, pois, de uma frustrada tentativa de se apropriar indevidamente de tradições do povo bíblico com intuito de legitimar a dominação atual. É, no mínimo, irônico que os fundamentos religiosos do capitalismo norte-americano, estampados nas cédulas do dólar, revelam o esforço para promover a relação entre Deus e o mercado: “In God we trust” (Em Deus nós confiamos). Esse mesmo sentimento religioso puritano está presente no hino nacional: God Bless America. Difícil mesmo é perceber qual é o grau de comprometimento dos ideais norte-americanos de liberdade com a proposta do Reino de Deus proclamado por Jesus nos evangelhos. Ora, “os americanos passaram a ver-se como a nova Roma” e “os pais fundadores consideravam-se instituidores de uma República à imitação da antiga Roma” (p.9). Não consigo ver na proposta de se inspirar na herança bíblica do Êxodo para criar um ideal de democracia e liberdade outra coisa senão a distorção dos propósitos do Reino de Deus para fins de legitimar uma nova ideologia de imperialismo, disfarçada sob leitura despolitizadora de um Jesus “domesticado”.   
Em sua identidade, “os americanos passaram a ver-se como a nova Roma”. E "ao cultivar a 'virtude republicana', a busca do bem da sociedade como um todo, os líderes políticos da nova nação pretendiam ansiosamente evitar os erros dos antigos romanos". Contudo, "parece algo totalmente diferente da identidade originária dos americanos - um povo bíblico praticando a virtude republicana romana - o fato de os Estados Unidos terem se tornado recentemente a única superpotência remanescente" (p. 9).
As coisas ficaram mais complicadas depois dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, quando os americanos foram obrigados a se questionar porque os outros povos os odeiam tanto, sendo que essa mesma pergunta já era feita pelos povos sobre os americanos: “porque os americanos nos odeiam”?
Horsley lança, pois, a provocação àqueles que fizeram de Jesus uma mera figura religiosa, despolitizado em sua ação, reduzido a um sujeito sem significado político, alguém incapaz de causar qualquer ameaça às instituições de seu tempo. Só não conseguem explicar a embaraçosa situação causadora da morte de Jesus. Porque um sujeito tão inofensivo deveria ser morto na cruz romana? Para evitar tocar esse problema, Jesus sofreu um processo de domesticação política, tornando-se alienado dos problemas que tanto infligiam seu povo oprimido pela mesma Roma que o executou.
Olhando de cima da pirâmide social, Jesus é "uma figura que está na origem de uma religião a partir de outra, o surgimento do cristianismo a partir do judaísmo" (p. 12). Ou pior que isso, um homem de índole religioso que odiava se envolver em política. Nada mais cômodo para quem vê essa realidade sob a ótica do opressor, da vitória do cristianismo sobre o judaísmo depois de Constantino! Esse construto teológico, baseado na superioridade, porém, contradiz as formas improvisadas de movimentos de Jesus sugeridos nos evangelhos. Os seguidores desse movimento sofreram perseguições por conta do ideal de Reino de Deus que era defendido, como a prática da justiça, o perdão e a destruição dos poderes diabólicos que se manifestavam na opressão dos governantes. Se, no século I, idéias como essas incomodaram as autoridades levando-as a eliminarem pessoas como Jesus, então “não temos mais condições de ficar sossegados com essas representações domesticadas de Jesus. Não podemos mais ignorar o impacto do imperialismo ocidental sobre povos subordinados e sobre as formas de reação de povos que sentem suas vidas invadidas. A analogia histórica 'coincidente' é muito inquietante..." (p. 12).
A abordagem contextual política de Horsley sobre Jesus, aliás, do ponto de vista do contexto da opressão romana, não pode subestimar o complexo universo ambiente cultural-religioso judaico da Terra de Israel. Afinal, foi nesse universo doméstico judaico do século I que Jesus exerceu o ministério e morreu crucificado. Portanto, se existe uma força inspiradora germinal no movimento criado por Jesus, este deve ser compreendido como uma característica de outros movimentos de seu tempo. A proposta abarca, nesse caso, o ideal da tradição popular do profetismo bíblico israelita, força arrebatadora que modelou a tom profético de seus protestos.
Conclui-se daqui, que o tom político na mensagem de Jesus não pode ser esvaziado de conceitos religiosos essenciais, como Reino de Deus, da mesma maneira que este conceito não está alienado de valores políticos.

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